sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Conversa de botequim


(edifício nos arredores da Cruz Vermelha, Rio de Janeiro)

O panorama politico permanece morno, mas um morno esquentando, não um morno esfriando, se é que me entendem. As pesquisas eleitorais produziram um pouco de eletricidade, mas só um pouco. Foi o suficiente, contudo, para gerar um pequeno curto-circuito nos debates internáuticos. Eu contribuí um pouquinho, com meu artigo "Dilma seduz os chiques", analisando os números do Sensus. As hostes dilmistas, entre as quais eu me incluo, ficaram nervosas e desconfiadas com as recentes pesquisas do Datafolha, classificado peremptoriamente como "datafraude", e do Sensus, sem apelido pejorativo, por enquanto. Bem, eu não fiquei nervoso, nem desconfiado. Não sou nenhum crédulo em pesquisas, mas não quero acusar sem provas. Naturalmente, existem diversas maneiras de alterar uma pesquisa sem fraudá-la descaradamente. Basta privilegiar uma região em detrimento de outra, por exemplo.

Dilma Rousseff era, no ano passado, uma solene desconhecida, com menos de 3% das intenções de voto e agora já se constitui na principal adversária dos planos do PSDB para retornar ao poder. Todos a conhecemos melhor agora. Eu a conheço melhor agora, e posso afirmar que se trata de uma pessoa extraordinária, dotada de uma inteligência política ímpar. Se compararmos com Serra, que mal consegue alinhavar duas ou três frases sem confundir-se ou repetir um clichê, é realmente um luxo possuir uma candidata do calibre intelectual de uma Dilma Rousseff.

Às vezes eu leio as opiniões de analistas de marketing político e fico estupefato de ouvir tanta abrobrinha. Por exempo, a questão da transferência de votos, o maior terror da direita, representada hoje pelo PSDB. Que Lula tem grande popularidade e que, se pudesse disputar um terceiro mandato, ganharia com facilidade, todos parecem concordar. Tanto que fizeram um enorme terrorismo com isso. Tenho certeza que, se o PSDB ocupasse a presidência com um líder carismático como Lula (o que seria quase impossível, enfim, mas pense apenas hipoteticamente), eles conseguiriam aprovar, com entusiasmo midiático, um terceiro mandato.

Por outro lado, não preciso ser um analista de marketing político para saber que é evidente que haverá uma maciça transferência de votos de Lula para Dilma. A partir do momento em que a legislação eleitoral, conforme manda a Constituição, liberar Lula para apoiar a sua candidata, e que o presidente ocupar todos os canais de televisão durante o horário eleitoral, conforme também permite a Constituição, explicando ao eleitor que Dilma Rousseff é a sua candidata e que José Serra é seu adversário; enfim, quando Lula não apenas pedir ao povo, com todo o talento oratório que Deus lhe deu, que vote em Dilma Rousseff, mas também que NÃO vote em José Serra ou outro candidato do PSDB, como será possível que não haja transferência de votos? Digam-me, como será possível?

Há uma grande confusão. Pode não haver transferência de votos nas eleições municipais, ou estaduais, por razões óbvias, mas na eleição majoritária, presidencial, parece-me uma simples questão de bom senso primário saber que haverá, sim, uma maciça transferência de votos de Lula para Dilma Rousseff. A menos que se articule uma monstruosa operação de engana-eleitor (o que é impossível, devido ao horário eleitoral obrigatório), para confundir a população, como alguns políticos do DEM fizeram no Nordeste, afirmando aos eleitores, mentirosamente, que eram apoiados por Lula.

Só isso já garante a vitória de Dilma Rousseff. Parece-me elementar. Aliás, conforme as eleições forem se aproximando e o assunto entrar nos lares e botequins de todo país, haverá maior esclarecimento da população.

No entanto, continuo achando ingênuo, temerário e incoerente que as mesmas pessoas que passaram os últimos anos brandindo as pesquisas do Sensus, Datafolha, Ibope, Vox Populi, que mostravam a impressionante popularidade de Lula, agora venham, bruscamente, desmerecer esses institutos porque não mostram Dilma numa trajetória de crescimento tão dinâmica e avassaladora como gostariam. Não se trata de "acreditar" nas pesquisas. Os números são dos institutos, não nossos, e são apenas pesquisas.

O que não faz sentido é a fé no voto de manada. Isso é que me parece irracional. É desrespeitar a inteligência do eleitor achar que ele votará em Serra porque viu na pesquisa que o tucano está com 42% e Dilma com 24%. Qual a lógica disso? Há voto útil, isso sim. O anti-lulista radical, cujo único desejo é derrotar o PT, mas que não gosta do PSDB, votará no Serra se achar que é ele quem pode fazer isso. Mas nenhum eleitor de Lula, nem o mais ignorante do grotão mais recôndito do Amazonas, irá votar em Serra em 2010, desde que tenha tido a sorte de assistir na TV, ou ouvir no rádio, um único programa eleitoral em que o próprio Lula peça a ele que vote em sua candidata, Dilma Rousseff.

Quanto à Marina Silva, creio que ela pode tirar sim votos da Dilma, mas também tira votos do Serra, talvez na mesma proporção, e esses votos voltarão no segundo turno. De qualquer forma, agora entendi melhor a posição de Marina, e, depois de uma irritação inicial (ainda mais depois que descobri que ela é contra o aborto, contra células tronco, criacionista, etc), passei a respeitá-la. Assisti a uma entrevista sua esclarecedora, e constatei que ela possui uma astúcia política bem superior a que seus detratores imaginam e está conseguindo escapulir sutilmente das garras de um e de outro lado. Quiçá Marina Silva consiga uma proeza maravilhosa: tirar o ambientalismo da bocarra interesseira, e falsária, da direita, e conduzi-lo para onde ele nunca deveria ter saído, para o lado dos trabalhadores, que não são donos de indústrias poluidoras, nem de latifúndios desmatadores, e são sempre as maiores vítimas da poluição e da destruição do meio ambiente.

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Um dos inimigos mais perigosos da esquerda, hoje, é a turma dos "sonhos" e da "esperança", seres lacrimejantes e melosos que me irritam profundamente. Porque os sonhos deles são uma química vazia, e a sua esperança é simplesmente farisaica. Obrigatoriamente pertencentes a setores decadentes da classe média, seu sonhos e sua esperança, ao que parece, não incluem a redução da miséria, nem nunca, pelo jeito, tiveram uma percepção real da humilhação e degradação moral que a miséria causa às famílias. Agarram-se exclusivamente ao discurso moralista, como se o presidente Lula tivesse sido eleito para ser o salvador moral da Pátria, como se isso fizesse algum sentido. O que é pior: são desinformados - sua fonte de informação é unicamente a grande imprensa, que, aliás, usa e abusa desse exércitozinho manipulável de "desencantados", "tristes", que, curiosamente, não páram nunca de se decepcionar. Há sempre um grau mais baixo para eles enfiarem a sua melancolia despolitizada. No fundo, são todos grandes vaidosos e, como tais, eternos angustiados por seu ego não ser incensado pela sociedade como gostariam, e destilam sua amargura mundo afora, lamentando uma pureza perdida que nunca existiu.

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As eleições de 2010, mais do que a oportunidade de darmos continuidade a uma coalizão governamental de esquerda, com todas as suas implicações geopolíticas mundiais, também são, e pelas mesmas razões, uma ocasião para realizarmos um debate político avançado, que é, em si mesmo, uma forma altamente sofisticada de cultura. Aliás, agora cheguei no ponto onde posso fazer uma citação que há tempos desejava fazer.

Em "Um filme falado", de Manoel de Oliveira, há uma cena muito legal. No salão de jantar de um luxuoso navio, reúnem-se a uma mesa três senhoras elegantes, uma francesa (Catherine Deneuve), uma italiana e uma grega, e o comandante, que é nada mais nada menos que o mestre John Malkovich. O grupo inicia uma conversa interessante sobre os ideais de cada um. A francesa confessa que seu ideal é o mais racional possível, ou seja, ganhar dinheiro. A italiana diz que seu objetivo na vida é viver um grande amor. John Malkovich fala de suas culpas e de seu orgulho de ser americano. E aí entra a grega. Resumi o discurso dos outros porque queria mesmo falar dessa grega, uma linda atriz de cabelos negros e olhos penetrantes. Representa uma prestigiada intelectual européia, que faz um discurso politizado sobre os árabes, acusando-os de, após terem disseminado a cultura greco-romana pelo mundo, retrocederem culturalmente, incendiando a famosa Biblioteca de Alexandria. Malkovich elogia a inteligência da mulher, dizendo que ela possui uma percepção política avançada. Ela aceita o elogio, sorrindo. A italiana retifica: "não se trata de política, mas sim de civilização". A grega, que fala em sua língua natal (o que lhe confere um charme irresistível), discorda da intervenção da italiana, que procura minimizar o valor da palavra e do conceito "política".

E diz a frase que eu queria tanto citar: "a política cria a civilização. A ação cria a história." Catherine Deneuve, a francesa, completa: "a triste história da humanidade"... Mas voltando a frase da grega, a sua força, nesse filme, é enorme, porque ela fala em grego, e é uma grega, representando ali o pensamento original grego. (Assista a cena aqui. A fala da grega acontece no minuto 4:00).

É verdade que o sentido de uma frase varia de acordo com o contexto em que a mesma é pronunciada. Outros fatores alteram-lhe o sentido: o idioma, a entonação, a disposição de espírito com que é assimilada. No caso, eu assimilei a frase da grega como uma intervenção do que havia de mais belo no Mundo Antigo. Até hoje os historiadores se maravilham com a modernidade do mundo grego, notadamente de Atenas. A cultura helênica, sua arte, sua filosofia, não existiriam sem a civilização produzida pela política, e a sua história, por sua vez, é resultado da ação concreta dos indivíduos gregos, que pensaram e lutaram em prol da liberdade e da justiça.

E não importa que a história da humanidade seja triste. Liberdade e justiça não têm nada a ver com alegria. Afinal, um macaco pode ser mais alegre, mais feliz, do que um ser humano. O homem e a mulher foram expulsos do Paraíso porque, justamente, recusaram a inocência feliz em que viviam.

A mesma coisa vale para a democracia. Ela não é uma linha de chegada, mas um ponto de partida. A democracia é um princípio puramente racional, lastreado apenas numa única lei: o poder emana do povo. O povo escolhe seus representantes para criarem as leis que todos irão respeitar. Mas se quiser, o povo pode mudar esses representantes, no pleito seguinte, para substituir todas essas leis por outras, que terão de ser igualmente respeitadas por toda a sociedade.

Mas as leis não são dez mandamentos sagrados. O ser humano tem o bom senso para interpretar a lei, justamente porque tem a intuição de que o poder, no fundo, reside em seu juízo, em seu espirito. Afinal, o povo é uma noção abstrata. O povo é o coletivo dos indivíduos. O único ser real, de carne e osso, é o indivíduo. Então pode-se dizer que o poder emana do indivíduo.

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Por isso, a luta política é também um ação cultural. Às vezes mais que isso - é uma ação que funda, que cria cultura. A história está sempre sendo recontada. Por exemplo, os beatniks dos anos 50 nos Estados Unidos, que tanta influência até hoje exercem na cultura americana e no Brasil, eram pessoas altamente politizadas, de esquerda, que entendiam a relação da cultura com a política. Suas conversas passavam dos poemas de T.S.Eliot para o avanço dos republicanos em Nova York, e por aí vai. Porque os EUA, por terem se constituído o centro político do mundo, depois da II Guerra, conservaram e conservam uma auto-estima elevada em relação à política.

No Brasil, sofremos uma chantagem moral. A mídia decretou que política não é cultura. E o monopólio absoluto que três famílias exercem sobre a comunicação de massa no país mantém a sociedade civil em eterno estado de chantagem. Empresários, artistas, profissionais liberais, sentem-se acuados diante de uma mídia monopolista que não se restringe a dar um apoio unilateral e histérico a um dos lados da disputa política, mas também procura depreciar moralmente o outro.

Isso cria uma situação embaraçosa para todos. Produz uma minoria com complexo de maioria, para citar Renan Calheiros, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. Lembro de uma vez que eu estava numa agência de turismo, para fazer uma troca de passagem para minha esposa, que se encontrava fora da cidade, e os funcionários começaram a conversar em voz alta sobre política, de uma forma um tanto descarada, sem respeitar a minha possível opinião sobre o tema. Criou-se uma situação em que uma classe média sente-se positivamente constrangida, desconfortável, diante de um presidente que, paradoxalmente, tem enorme reconhecimento mundial e uma popularidade interna jamais vista. Um conhecido colunista lançou, inclusive, um livro intitulado "Lula é minha anta" e a editora espalhou outdoors em todos os aeroportos do país. Ora, você animalizar uma figura desta maneira é uma tentativa de humilhar os 64 milhões de brasileiros que votaram nele e mais de 80% da população que o aprova.

É nesse sentido que muitos brasileiros acham que Lula é complacente demais, que deveria reagir com mais agressividade aos ataques que sofre. Dizem isso porque os ataques doem mais neles do que no presidente, um homem que, diante das enormes humilhações que experimentou em sua vida, sente-se, mais que nunca, confiante e orgulhoso de suas conquistas, encarando os ataques de hoje como mordidinhas insignificantes em seu pé calejado.

Aí está a diferença de Dilma Rousseff. A escolha da ministra para suceder Lula foi genial. Dá para entender a admiração de Lula por Dilma: ela é bastante original em relação a ele. Ela tem um vocabulário elegante, uma entonação culta, diploma universitário (não tem doutorado completo, mas tem faculdade), além de uma impressionante agilidade mental. Dilma tem mais cancha para enfrentar a classe média do que Lula, cuja comunicação fala mais ao povo. No momento em que a classe média, segundo o IBGE, já é maioria na população brasileira, nada mais conveniente do que uma candidata que possa inspirar admiração e respeito junto a esses setores da sociedade.

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