sexta-feira, 1 de janeiro de 2010


Apenas mais uma história

Eduardo Guimarães


No primeiro dia deste ano, cumpri uma promessa que me fiz: assistir ao lançamento do filme sobre Lula. E dois de meus filhos me prometeram que iriam comigo. Na hora H, o garoto se meteu com a namorada debaixo das cobertas para assistir a um DVD de ficção científica e a filha casada deu tantas desculpas que acabo não me lembrando de qual era a principal.

Olho para um lado, para o outro, consultando com os olhos o resto dos familiares sobre se todos teriam coragem de me deixarem ir ao cinema sozinho, numa chantagem emocional que sempre dá certo, mas a opção que me deram foi eleger o membro mais corruptível da família, que eu poderia subornar com um saco de pipocas e alguns doces e refrigerantes.

Minha neta, a Letícia Maria, mostrou-se interessada na proposta. Em poucos minutos, já caminhávamos as quatro quadras que separam meu apartamento (onde a família se reuniu para o almoço de Ano Novo) do Shopping Paulista, onde o filme está em exibição.

A criança de oito anos foi me fazendo perguntas sobre o presidente e até sobre a Presidência da República. Enquanto respondia às questões da Letícia Maria, senti que estava fazendo alguma coisa de muito certa ao levá-la para ver aquele filme, até porque os olhinhos dela brilhavam de interesse pela explicação.

Já na porta do cinema, encontrei os avós paternos de minha neta, ou seja, o pai e a mãe do marido de minha filha, pai da Letícia, e eles também estavam indo ver o mesmo filme que nós.

É um casal de médicos. O homem é baiano e militar (oficial médico jubilado do Exército) e a esposa é paulista-paulistana, descendente de italianos, e cardiologista. Pelo menos o pai de meu genro é um homem de idéias conservadoras. Faço o registro para retomar este aspecto do relato mais adiante.

Em um 1º de janeiro, as ruas do bairro do Paraíso estavam literalmente vazias, bem como o shopping em questão. Surpreendeu-me, pois, ver que pelo menos metade dos lugares do cinema estavam ocupados. Além disso, aquela sala de projeções fica em um dos shoppings mais caros e elegantes de São Paulo, na extremidade Sul da Avenida Paulista, ambiente em que Lula não é lá muito popular.

O filme não me pareceu “endeusar” Lula coisa nenhuma. Mostra a trajetória de um homem simples, de origem muito pobre, dotado de carisma e de inteligência acima de média e que lutou muito durante a vida, tendo sofrido revezes terríveis e que, apesar disso, nunca desistiu por seguir o conselho de sua mãe de que bastaria “teimar” para se alcançar um objetivo.

A obra do cineasta Fábio Barreto mostra Lula como um homem de rara inteligência que, colocado diante do movimento sindical e da política, assumiu quase que naturalmente a liderança de todos os que ali gravitavam valendo-se apenas de seu jeito simples, autêntico e bem-humorado de ser, e de uma ousadia ímpar, como a de convocar uma assembléia de metalúrgicos que era ilegal durante o regime militar.

Ao fim do filme, eu e os pais de meu genro saímos conversando. O sogro de minha filha, que imigrou do Nordeste há décadas e venceu na vida em São Paulo, tendo se tornado médico, disse-me que a história de Lula é apenas mais uma história como a de milhões de nordestinos que vieram tentar a sorte no Sul Maravilha, apesar de que muito poucos vencem como ele próprio e Lula.

Vale destacar que o conservador sogro de minha filha se disse surpreso por nunca ter tido informações como aquelas que acabara de receber sobre a vida do presidente da República, não daquela forma.

Já deixávamos o shopping quando começou a cair uma chuvinha fina, fria, cortante. Chamamos um táxi e o dividimos, pois somos vizinhos. A mãe de meu genro me perguntou o que achava das chances de Dilma, mas o pai ficou pensativo até que se despedisse de mim e de nossa neta quando o automóvel parou diante de minha casa.



Escrito por Eduardo Guimarães às 22h37
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Denúncia

A chantagem dos golpistas

Preferia escrever um texto mais ameno no primeiro dia de 2010, mas como nos últimos dias de 2009, mais uma vez, o Brasil foi encoberto por uma sombra que paira sobre si há mais de cinqüenta anos, pela sombra do golpismo, este meu primeiro texto do ano nada terá de ameno.

Devido aos esforços do governo Lula para trazer à luz os crimes hediondos cometidos pelos golpistas civis e militares nos idos de 1964, acabei lendo textos ameaçadores das instituições na mesma imprensa que fomentou o golpe militar naquele ano tão triste para este país.

O pior texto, o mais mentiroso, o mais covarde e o mais ameaçador foi publicado como editorial pelo jornal O Estado de São Paulo no último dia do ano passado. E não nos esqueçamos de que esse jornal foi um dos mentores empresariais da violação da democracia no Brasil por suas Forças Armadas.

O título do editorial, por si só, já constitui uma chantagem, uma ameaça explícita à democracia brasileira. “Brincando com fogo”, é o título. E quem estaria “brincando” seria o governo Lula, de forma que só se pode entender que os militares poderiam retaliar uma decisão do governo de investigar e punir os abusos da ditadura.

A pergunta de um milhão, pois, é a seguinte: como seria essa retaliação? Por meio de um novo golpe?

Vamos em frente. O editorial em questão é formado por um amontoado de mentiras e de meias verdades que tentam fazer crer ao leitor embriagado daquele jornal mentiroso e covarde que a ditadura de 1964 e a resistência a ela foram a mesma coisa, e que, portanto, não se poderia punir os crimes de Estado que foram cometidos.

Em primeiro lugar, há que desmontar a principal mentira dos golpistas que borboleteiam por todos os estratos da vida nacional, seja na imprensa, nas Forças Armadas, na academia etc. O regime oriundo do golpe de 31 de março de 1964 foi ilegal desde o seu primeiro dia até o último.

Para entender por que o regime militar brasileiro foi ilegal, primeiro temos que entender por que são feitos os golpes de Estado.

Resumindo a premissa em uma frase, pode-se dizer que os golpes são cometidos pelos que não conseguem ganhar eleições por não terem votos, de maneira que optam por desobedecer a vontade popular expressa pelas urnas e tomam o poder à força.

Repito a premissa de outra forma, para que não reste dúvida: golpes de Estado só são concebidos quando não há base legal para interromper um mandato popular e quando não há perspectivas de derrotar o governante dentro das regras do jogo democrático.

O ex-presidente Jango Goulart, portanto, foi derrubado porque seus adversários políticos não acreditavam que poderiam vencê-lo em eleições limpas e porque não tinham como impor a ele um processo político, feito de acordo com a Constituição, que resultasse na perda legal de seu mandato.

É como se nós, que nos opomos a golpes de Estado, decidíssemos que não se pode usar uma concessão pública – como uma televisão, por exemplo – para fazer proselitismo político ou ideológico em favor de grupos sectários e, assim, decidíssemos invadir, em outro exemplo, a TV Globo, a fim de passarmos a exibir nessa concessão pública só aquilo de que gostássemos.

Do que se trata uma atitude como essa descrita acima, é do seguinte: por sabermo-nos desamparados pelas leis, passaríamos por cima delas.

E outra mentira dita pelo editorial em tela foi a de que, para condenarmos os torturadores e assassinos que usaram o poder do Estado em seus crimes, teríamos que punir aqueles que lutaram contra um ato de força ilegal como foi o golpe de 1964.

Mentira. Não se pode equiparar a ação de grupos isolados e que agiam em nome da Carta Magna ao tentarem impedir a prevalência de um ataque ilegal às instituições com a ação de criminosos que violaram as regras da democracia e o próprio Estado Democrático de Direito.

Além disso, os métodos dos dois lados foram distintos. Não há relatos críveis e comprovados de torturas praticadas pela Resistência aos golpistas, enquanto que estes têm contra si provas infindáveis de crimes que cometeram, como o de estuprar uma filha ou um filho diante do seu pai, ou uma esposa diante do marido, ou como a prática de mutilações e outros métodos bestiais que os golpistas usavam para “extraírem informações”.

Houve, sim, ataques da Resistência ao regime de 1964 contra alvos dos usurpadores do Poder, mas tais ataques se inserem em uma tentativa de reação legalista, pois o uso da violência é aceitável se for para defender as instituições, as leis, o interesse e a vontade coletivos.

Ora, se Jango Goulart foi eleito em uma chapa legítima por um partido político legalizado de acordo com as regras eleitorais vigentes, só um plebiscito ou um processo jurídico-político previsto na Constituição poderia retirá-lo do poder. Combater quem usou a violência para subverter as leis, pois, era obrigação de todo brasileiro.

Não é por outra razão que o editorial do Estadão “Brincando com o fogo” me preocupou. É clara a ameaça de ruptura da ordem constitucional caso um governo investido de legitimidade para legislar sobre essa matéria da Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura desagrade as Forças Armadas subordinadas a esse governo.

A sociedade e suas instituições devem reagir contra essa chantagem golpista que visa impedir que a verdade seja contada, para que esses criminosos nunca mais ponham suas garras asquerosas no que não têm direito e para que nunca mais prendam ilegalmente, estuprem, torturem e matem ninguém.

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