Globo e Veja: caçadores de marajás
O
Conversa Afiada reproduz editorial de Mino Carta, na
Carta Capital:
Roberto Civita é dotado
exclusivamente de certezas. Talvez se deva ao QI. Há 52 anos, em um dia
de abril ou maio, vinha ao lado dele pela calçada de uma rua central de
São Paulo a caminho da Editora Abril, onde eu aportara pouco antes, e
eis que pergunta qual seria meu quociente de inteligência. Declaro
ignorar, de fato nunca me submeti a exames psicotécnicos. Sorriso
cesáreo, pronuncia um número e esclarece: “É o meu”. “Satisfatório,
imagino”, comento. Mais que isso, premia um ser humano a cada 25 milhões
de semelhantes. O Brasil tinha então 70 milhões de habitantes, donde
deduzo: “Só pode haver mais dois iguais a você”. “Pode – admite, plácido
–, mas a estatística inclui todos os terráqueos, de sorte que eu
poderia ser o único.”
Roberto Civita tende mesmo a se
considerar único, um Moisés chamado a conduzir a Abril à terra
prometida. Pronto a pôr em prática, assim como o herói bíblico dividia
as águas, as artes da mídia nativa, inventar, omitir, mentir. Tropeço
entre atônito e perplexo na última edição da revista Veja, a qual
impavidamente afirma, entre outras peremptórias certezas, a autoria da
derrubada de Fernando Collor da Presidência da República em 1992. Comete
assim, entre a invenção e a mentira, o enésimo lance clássico do
jornalismo nativo ao contar um episódio tão significativo da história do
País.
Um ex-diretor da Veja, Mario
Sergio Conti, escreveu um livro, Notícias do Planalto, para sustentar
que Collor foi eleito pelos jornalistas. Não sei se Conti é mais um dos
profissionais que no Brasil chamam o patrão de colega. Claro está, de
todo modo, que a mídia naquela circunstância executou a vontade dos seus
barões, a contarem com a obediência pronta e imediata dos sabujos. E à
eleição de Collor Veja ofereceu uma contribuição determinante não menos
do que a das Organizações Globo. Agora gabam-se pelo dramático desfecho
do governo interrompido e omitem que lhes coube a criação do monstro.
Os leitores recordam certamente
a expressão “caçador de marajás”. Pois nasceu no berço esplêndido da TV
Globo e foi desfraldada à exaustão pela capitânia da esquadra
abriliana. Ocorre que o naufrágio collorido não foi obra desta ou
daquela, e sim do motorista Eriberto, que prestava serviço entre o
gabinete presidencial do Planalto, o escritório de PC Farias e a Casa da
Dinda. Localizado pela sucursal de IstoÉ em Brasília ao cabo de uma
exaustiva investigação, trouxe as provas que a CPI não havia produzido. É
a verdade factual, oposta à versão da última edição de Veja.
Lembro aquele sábado de 1992 em
que IstoÉ foi às bancas com as revelações decisivas, de sorte a obrigar
os jornalões, a começar pelo O Globo, a reproduzir as informações
veiculadas pela semanal que então eu dirigia. A entrevista de Pedro
Collor a Veja, do abril anterior, não bastaria para condenar o irmão
presidente, tanto que a CPI se encaminhava para o fracasso. Pedro, de
resto, nada de novo dissera na entrevista, a não ser a referência a
certos, surpreendentes supositórios de cocaína. No mais, repetira, um
ano e meio depois, uma reportagem de capa de IstoÉ.
No fim de setembro de 1990, Bob
Fernandes passou a acompanhar os movimentos de PC Farias por mais de um
mês para desnudar, ao fim da tocaia, que o levou inclusive a
hospedar-se no mesmo apart-hotel da eminência parda do governo, a culpa
em cartório do presidente e seu preposto à corrupção. No dia do
fechamento de IstoÉ, tarde de uma sexta-feira, fui visitado por um
ex-colega, intermediário da tentativa de impedir a publicação. Veio ele
melífluo, portador de um pedido partido de altos escalões (depois
naquelas alturas identificaria a ministra Zélia, mais talhada para
dançar bolero do que carregar a pasta da Economia), e eu prontamente
apontei-lhe o caminho da rua. Nem por isso deixei de declinar a minha
condição de empregado e admitir que meu patrão quem sabe pudesse ser
seduzido com ouro, incenso e mirra. Não sei por que evoquei os magos na
noite de Belém.
Logo, na prática, a sedução foi
ensaiada em dólares, a bem da contemporaneidade, e Domingo Alzugaray,
dono da Editora Três, recusou dignamente de 1 milhão a 5 milhões, até
hoje ignoro o nível atingido pela derradeira oferta. Constatei depois,
na costumeira troca de opiniões com meus botões, que os dólares teriam
sido gastos inutilmente. A reportagem de capa caiu como pedra no
pântano, não houve quem a repercutisse. Foi um daqueles momentos em que
se recomenda o recurso à omissão.
Era cedo demais, teve de passar
um ano e meio para que a mídia da casa-grande se convencesse de que o
pedágio cobrado por Collor e PC era exorbitante. Apelou-se para o Pedro
rebelde. Este episódio, desdobrado em pouco mais de dois anos de governo
do “caçador de marajás”, é simbólico dos comportamentos dos nossos
donos do poder, a partir da própria opção por Collor como anti-Lula. A
tigrada em risco se dispõe a agarrar em fio desencapado.
O emblema é, porém, mais
abrangente. Na sua patética edição desta semana Veja consegue demonstrar
apenas que a lâmpada da capa é a enésima mentira. A série de textos
pendurada no varal vejano estica-se na treva mais funda. Não se trata
simplesmente de um manual de como o jornalismo pátrio atua, a inventar,
omitir e mentir, mas também de mediocridade, parvoíce e ignorância. Em
matéria, nos deparamos com uma obra-prima recheada por capítulos
extraordinários na sua capacidade de suscitar tanto a hilaridade quanto o
espanto.
Sem pretender hierarquizar na
avaliação do ridículo e do grotesco, vale a afirmação de Veja que se
apresenta como vítima do ataque conjunto da imprensa ligada aos setores
radicais do PT e pela internet, entregue a robôs de militância petista.
Programados pelos cientistas (aloprados?) do partido da presidenta e do
ex-presidente? O Brasil, segundo a semanal da Abril, confunde-se com
Rússia, Cuba e Venezuela, onde a liberdade de imprensa é violentamente
cerceada, e com a China, de internet robotizada. Talvez a rapaziada de
Veja tenha de racionar suas idas ao cinema para assistir à ficção
científica estilo Matrix. Claríssima é, contudo, uma área que a
Skuromatic não logra alcançar: a proposta de censura à internet,
estampada com todas as letras por quem se apresenta como paladino da
liberdade de expressão.
Passagem empolgante aquela em
que Veja define Antonio Gramsci, notável pensador do século passado
morto na cadeia fascista às vésperas da Segunda Guerra Mundial depois de
11 anos de cativeiro, autor de uma obra monumental intitulada Cadernos
do Cárcere, que ele considerava como ensaio daquela a ser escrita em
liberdade. A revista da Abril decreta: Gramsci é um terrorista vermelho,
não menos que Lenin e Stalin. Pois é do conhecimento até do mundo
mineral que Gramsci plantou as raízes da transformação do partidão
italiano, enfim capaz de abjurar os dogmas marxista-leninistas e de se
afastar do Kremlin para desaguar no eurocomunismo de Enrico Berlinguer,
de pura, autêntica marca social-democrática. Permito-me propor à redação
de Veja os nomes de um punhado de terroristas: Sócrates, Jesus Cristo,
Montano, Lutero, Maquiavel, Pascal, Voltaire, Caravaggio, Daniel Defoe,
Jonathan Swift, Garibaldi, Bolívar, Dostoievski, Espinoza. Há muitos
outros, mas são estes que me ocorrem de chofre.
Não faltam, para fechar o
círculo, as omissões. Por que não consta entre as façanhas vejanas a
fantástica revelação das contas clandestinas no exterior de figurões
variados do governo Lula, encabeçada por aquela do próprio presidente? E
por que não se evoca a reportagem de sete anos atrás, sobre os dólares
destinados a abastecer as burras petistas, chegados de Cuba em garrafas,
com as mensagens dos náufragos? De rum, imaginariam vocês. Nada disso,
de uísque. Nunca fica tão evidente, de limpidez ofuscante, que Veja é a
revista do inventor da lâmpada Skuromatic.
Quando me demiti da direção da
redação de Veja e de integrante do conselho editorial da Editora Abril,
disse ao chairman of the board, Victor Civita: “Por nada deste mundo
hoje trabalharia na Abril, entre outros motivos porque seu filho Roberto
é um cretino”. O patrão retrucou, sem irritação evidente: “Não diga
isso, diga ingênuo”. Dois dias antes, fevereiro de 1976, o filho me
confessara, candidamente, que o então ministro da Justiça (Justiça?)
Armando Falcão pedia a minha cabeça como condição do fim da censura e de
um empréstimo de 50 milhões de dólares pela Caixa Econômica Federal.
É uma longa história, que já
contei mais de uma vez. E eu me demiti, ao contrário do que escreveu
Mario Sergio Conti, sabujo emérito, pronto a adotar a versão patronal,
porque não queria um único, escasso centavo do inventor da lâmpada
Skuromatic. Ou não seria lanterna, com a vantagem de ser carregada onde o
usuário bem entenda?
P.S.: Não consigo entender por
que Marco Antonio Barbosa, figura altamente confiável, não está entre os
integrantes da Comissão da Verdade, alguns altamente inconfiáveis.
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