Mídia: um balanço dos governos Lula
Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao fim de seus dois mandatos
presidenciais exibindo recordes mundiais de aprovação popular. Os
resultados da pesquisa CNI/IBOPE divulgados no dia 16 de dezembro de
2010 indicaram que a aprovação pessoal e a confiança no presidente
atingiram 87% e 81%, respectivamente, e a avaliação positiva do governo
chegou a 80%. Não há dúvida de que foi um governo bem sucedido.
Quando se analisam setores específicos de atuação, todavia, há divergências sobre os resultados alcançados. Uma dessas divergências se refere ao amplo e complexo campo das Comunicações. Os dois mandatos do presidente Lula representam um avanço para a democratização das Comunicações? Qual o balanço que se pode fazer das políticas públicas para o setor no período 2003-2010?
Não será incorreto afirmar que a maioria das propostas de políticas públicas que segmentos populares da sociedade civil organizada consideram avanços – apesar de importantes exceções – não logrou sucesso nos oito anos dos governos Lula. Ao contrário, muitas propostas foram abandonadas ou substituídas por outras que negavam as intenções originais.
Há um número razoável de razões que explicam porque no Brasil, ao contrário, inclusive, do que vem ocorrendo em países nossos vizinhos na América Latina, existem históricas e poderosas resistências ao avanço nas Comunicações. Lembro duas.
Primeiro, uma das dificuldades é que, aparentemente, tanto os defensores do status quo como os seus críticos insistem em focar o secundário e ignorar o principal.
Embora as questões profissionais e de conteúdo sejam relevantes, a mídia tem que ser entendida como uma instituição, uma totalidade. É nesse nível que se colocam as questões relacionadas à estrutura de sua organização na sociedade, à concentração da propriedade, à formação dos monopólios e oligopólios, à propriedade cruzada, entre muitos outros.
No que se refere à radiodifusão sonora, de sons e imagens, por exemplo, nunca será demais lembrar que compete constitucionalmente à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão esses serviços. Vale dizer: a radiodifusão privada é uma concessão pública. Ou melhor: as empresas que operam os canais de TV são propriedade privada; os canais são públicos.
Por outro lado, a Constituição de 88 refere-se ao serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens em termos da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Nunca tivemos no Brasil complementaridade entre os sistemas de radiodifusão. O rádio primeiro e a televisão, logo depois, foram consolidados como sistemas hegemonicamente privados, comerciais, sustentados pela publicidade, originariamente regulados por decretos de 1931 e 1932, durante o regime instalado pela Revolução de 1930, chefiado por Getúlio Vargas.
Ao contrário do que aconteceu em outros países, a opção prioritária por um modelo privado-comercial de radiodifusão foi feita nos gabinetes do poder, sem debate e sem participação popular. Como em vários outros momentos de nossa história, infelizmente, uma decisão que interessava a toda a população foi tomada sem que ela sequer compreendesse o que estava sendo decidido. Até hoje, as diferentes opções de organização da radiodifusão permanecem uma não-questão para a grande maioria dos brasileiros. A sociedade não teve a opção de escolher. E ainda não se deu conta de que tem o direito de fazê-lo. Esse fato nos conduz ao segundo ponto.
Uma questão recorrente no debate sobre as políticas públicas de Comunicações no Brasil é a exclusão histórica de setores populares da sociedade civil como ator significativo na sua formulação. Salvo raras exceções – e, mesmo assim, contraditórias e polêmicas – o principal interessado na existência de uma comunicação democrática tem sido um não-ator, sistematicamente excluído por aqueles que de fato exercem o poder, vale dizer, os grupos privados de mídia e o Estado.
Ao contrário de políticas públicas que envolvem direitos consolidados como a saúde, o salário mínimo, o emprego, a educação ou a moradia, o direito à comunicação ainda não está positivado legalmente e a consciência de sua existência é escassa e difusa na grande maioria da população brasileira.
Reside aí, aliás, um dos principais nós da questão. Nas Comunicações, são os atores cujos interesses historicamente predominam – os grupos privados de mídia – os responsáveis principais pela colocação dos temas na agenda pública. E mais: são esses atores que ainda têm o maior poder de influenciar, direta e/ou indiretamente, na formação da consciência pública sobre a questão.
Um complicador adicional é que os hábitos no consumo do entretenimento e da informação são construídos no longo prazo. E quando não se tem uma alternativa de referência, dificilmente o modelo cultural hegemônico é questionado.
Quando a Federal Communications Commission – a agência reguladora das comunicações nos Estados Unidos – tentou “flexibilizar” as regras da propriedade cruzada da mídia, em 2003, uma imensa e inesperada reação da população junto ao Congresso impediu que a medida fosse consumada. Milhões de e-mails entupiram as caixas de correio eletrônico de deputados e senadores mostrando o desserviço à democracia do que lá se chama “controle corporativo da mídia”.
A reação popular nos Estados Unidos foi conseqüência de um trabalho de “formiguinha” que dezenas de entidades de observação e crítica da mídia vêm fazendo ao longo do tempo. No Brasil, ainda falta muito para que o direito à comunicação se consolide junto à maioria de nossa população.
Dentro desse amplo quadro de questões e com o objetivo de contribuir para a ampliação do debate sobre as Comunicações é que se organizou este Política de comunicações: Um balanço dos governos Lula [2003-2010].
Não se trata apenas de apresentar um acompanhamento crítico das iniciativas de governo em relação às políticas públicas de Comunicações ao longo dos últimos oito anos, mas também de delinear o contexto cronológico dentro do qual os principais atores interessados na formulação dessas políticas se movimentaram no período. Para tanto, tomou-se como referencia cinco grandes temas, divididos em subtemas.
Marco regulatório
O primeiro deles foi o Marco Regulatório. Reúnem-se aqui trinta e sete artigos que discutem, em primeiro lugar, o estado geral de desrregulação do setor, com ênfase na não regulamentação dos artigos do capítulo sobre a Comunicação Social da Constituição de 1988. Em seguida, trata-se da ausência de regulação da propriedade cruzada dos meios, fonte principal do estado de concentração que caracteriza as atividades de mídia no nosso país. Em seguida, discutem-se evidências da permanência da prática do coronelismo eletrônico, incluindo-se aí o que nomeamos de “coronelismo eletrônico evangélico”. E finalmente trata-se do vai-e-vem relativo à elaboração de uma proposta de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa que, até o momento em que se escrevem essas linhas, não se materializou.
Evidentemente nem todas as áreas que um Marco Regulatório deve abranger estão contempladas nos artigos desse capítulo. A regulamentação da TV Paga, por exemplo, não está.
Desde 2007 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que “abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos”, além de revogar a Lei do Cabo de 1995. Na sua versão atual o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007 representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007 representa os radiodifusores; e o PL 323/2007 que se situa em posição intermediária entre os interesses dos dois setores. Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, a posição de diferentes atores em relação ao projeto tem oscilado na medida mesma em que o próprio projeto sofre alterações. A operadora Sky (Grupo News Corporation/Globo) e a Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura (ABPTA) patrocinam uma campanha publicitária denominada “Liberdade na TV“ [cf. o site http://www.liberdadenatv.com.br/], contrária ao projeto com o mote “querem intervir na sua TV por assinatura” [o PLC 116/SF transformado na Lei 12.485 de 12 de setembro de 2011].
Recuos
O segundo capítulo reúne dezenove artigos que representam importantes recuos nas políticas públicas de Comunicações ocorridos no período estudado. São discutidas a interrupção do processo de transformação da ANCINE em ANCINAV; a ausência de iniciativas efetivas em relação aos canais comunitários; o recuo em relação ao Serviço de Retransmissão de TV Institucional; a mudança de direção em relação à escolha do modelo de televisão digital; a não disponibilidade pública de um cadastro geral de concessionários de radiodifusão [o cadastro geral foi recolocado no portal do MiniCom em junho de 2011]e a interrupção no funcionamento do Conselho de Comunicação Social.
Apesar de serem mencionados em outros textos, não se faz no livro uma discussão específica sobre dois temas relevantes. O primeiro é o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Como se sabe, o governo Lula encaminhou projeto de criação do CFJ ao Congresso Nacional em agosto de 2004. Segundo a Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas), o principal objetivo era “promover uma cultura de respeito ao Código de Ética dos Jornalistas”. Diante da intensa e violenta oposição da grande mídia, no entanto, a própria Fenaj, preparou e distribuiu, em Brasília, um substitutivo ao projeto original, em novembro, agora de criação de um Conselho Federal de Jornalistas como “órgão de habilitação, representação e defesa do jornalista e de normatização ética e disciplina do exercício profissional de jornalista” [o texto do substitutivo pode ser lido em http://www.fenaj.org.br/cfj/projeto_cfj.htm]. Apesar disso, através de votação simbólica, por acordo de lideranças, a Câmara dos Deputados optou por desconsiderar o substitutivo e rejeitar o primeiro projeto em dezembro de 2004.
O segundo tema é o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Aqui houve importante recuo do governo Lula em relação às diretrizes originais para a comunicação constantes da primeira versão do PNDH3 [Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009]. Menos de cinco meses depois, novo decreto [Decreto nº. 7.177 de 12 de maio de 2010] alterou o anterior e, no que se refere especificamente ao direito à comunicação: (a) manteve a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe “a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados”; (b) exclui as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e (c) exclui também a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
Avanços
Neste capítulo estão reunidos dez artigos sobre a descentralização das verbas de publicidade oficial e a realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação, CONFECOM. Não estão especificamente discutidos, todavia, dois importantes avanços alcançados no período.
O primeiro é a criação da Empresa Brasil de Comunicação(EBC/TV Brasil), em 2007, resultado da fusão da Radiobrás com a ACERP/TVE, a TVE do Maranhão e o canal digital de São Paulo. Sua conformação final surgiu das dezenas de emendas que a MP 398/07 recebeu no Congresso Nacional. Apesar de críticas que podem ser feitas ao processo de sua implantação, a EBC, finalmente criada pela Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, significa que está “no ar” uma TV institucionalmente definida como pública. Isso desloca a disputa para definir o que é uma televisão pública para a sua própria prática.
O segundo avanço importante que não está contemplado no livro é o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Em maio de 2010, o decreto n. 7.175/2010 instituiu o PNBL com o objetivo de “fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, de modo a: massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga; acelerar o desenvolvimento econômico e social; promover a inclusão digital; reduzir as desigualdades social e regional; promover a geração de emprego e renda; ampliar os serviços de Governo Eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado; promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação; e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras.” A Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás) foi reativada e será a gestora do plano, estando prevista a atuação de empresas privadas de forma complementar para fazer os serviços chegarem ao usuário final.
O presidente da Telebrás tem acusado as empresas privadas de telefonia de boicotarem o PNBL. Na verdade, cinco grupos são responsáveis por 95% da oferta atual de banda larga no Brasil – Oi, Telefônica, Embratel/Net, GVT e CTBC – enquanto 2.125 pequenos provedores respondem pelos restantes 5% do mercado. Há pouca ou nenhuma competição e os grupos dominantes são contra a inclusão de metas de expansão da infraestrutura de banda larga nos contratos de concessão das empresas de telefonia que estão em fase de revisão na ANATEL, a agência reguladora do setor.
Balanços Anuais
O quarto capítulo reúne oito artigos, transformados em seis, que são balanços anuais – e um semestral – das políticas públicas de comunicações. Eles tentam mostrar como se comportaram as diferentes áreas abarcadas neste amplo e complexo campo e fornecem o pano de fundo histórico para a compreensão mais ampla do período 2003-2010.
Contexto e estratégias
O último capítulo reúne dezessete artigos divididos em torno de seis subtemas Governabilidade; Divergências Internas; Internet; Partidarização e Intolerância; Atraso e Futuro.
Pretende-se argumentar que, em diferentes ocasiões, o que está de fato envolvido na formulação das políticas publicas de Comunicações é a própria governabilidade do país. Ao longo do período 2003-2010, ficaram evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura e a SECOM-PR. Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos.
Registra-se também o formidável avanço da internet e o recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo. Em relação à crescente partidarização da mídia é necessário lembrar que ela tem como corolário não só o enfraquecimento dos partidos, como sua própria despolitização, na medida em que são afastados da política cotidiana e confinados às formalidades e à burocracia de seu funcionamento legal e dos procedimentos eleitorais.
Especula-se ainda com relação ao futuro, tanto em relação a propostas do empresariado do setor – autorregulamentação, por exemplo – quanto às expectativas em relação ao programa e a declarações da presidente Dilma Roussef, eleita presidente do país para os próximos quatro anos (2011-2014).
Quando se analisam setores específicos de atuação, todavia, há divergências sobre os resultados alcançados. Uma dessas divergências se refere ao amplo e complexo campo das Comunicações. Os dois mandatos do presidente Lula representam um avanço para a democratização das Comunicações? Qual o balanço que se pode fazer das políticas públicas para o setor no período 2003-2010?
Não será incorreto afirmar que a maioria das propostas de políticas públicas que segmentos populares da sociedade civil organizada consideram avanços – apesar de importantes exceções – não logrou sucesso nos oito anos dos governos Lula. Ao contrário, muitas propostas foram abandonadas ou substituídas por outras que negavam as intenções originais.
Há um número razoável de razões que explicam porque no Brasil, ao contrário, inclusive, do que vem ocorrendo em países nossos vizinhos na América Latina, existem históricas e poderosas resistências ao avanço nas Comunicações. Lembro duas.
Primeiro, uma das dificuldades é que, aparentemente, tanto os defensores do status quo como os seus críticos insistem em focar o secundário e ignorar o principal.
Embora as questões profissionais e de conteúdo sejam relevantes, a mídia tem que ser entendida como uma instituição, uma totalidade. É nesse nível que se colocam as questões relacionadas à estrutura de sua organização na sociedade, à concentração da propriedade, à formação dos monopólios e oligopólios, à propriedade cruzada, entre muitos outros.
No que se refere à radiodifusão sonora, de sons e imagens, por exemplo, nunca será demais lembrar que compete constitucionalmente à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão esses serviços. Vale dizer: a radiodifusão privada é uma concessão pública. Ou melhor: as empresas que operam os canais de TV são propriedade privada; os canais são públicos.
Por outro lado, a Constituição de 88 refere-se ao serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens em termos da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Nunca tivemos no Brasil complementaridade entre os sistemas de radiodifusão. O rádio primeiro e a televisão, logo depois, foram consolidados como sistemas hegemonicamente privados, comerciais, sustentados pela publicidade, originariamente regulados por decretos de 1931 e 1932, durante o regime instalado pela Revolução de 1930, chefiado por Getúlio Vargas.
Ao contrário do que aconteceu em outros países, a opção prioritária por um modelo privado-comercial de radiodifusão foi feita nos gabinetes do poder, sem debate e sem participação popular. Como em vários outros momentos de nossa história, infelizmente, uma decisão que interessava a toda a população foi tomada sem que ela sequer compreendesse o que estava sendo decidido. Até hoje, as diferentes opções de organização da radiodifusão permanecem uma não-questão para a grande maioria dos brasileiros. A sociedade não teve a opção de escolher. E ainda não se deu conta de que tem o direito de fazê-lo. Esse fato nos conduz ao segundo ponto.
Uma questão recorrente no debate sobre as políticas públicas de Comunicações no Brasil é a exclusão histórica de setores populares da sociedade civil como ator significativo na sua formulação. Salvo raras exceções – e, mesmo assim, contraditórias e polêmicas – o principal interessado na existência de uma comunicação democrática tem sido um não-ator, sistematicamente excluído por aqueles que de fato exercem o poder, vale dizer, os grupos privados de mídia e o Estado.
Ao contrário de políticas públicas que envolvem direitos consolidados como a saúde, o salário mínimo, o emprego, a educação ou a moradia, o direito à comunicação ainda não está positivado legalmente e a consciência de sua existência é escassa e difusa na grande maioria da população brasileira.
Reside aí, aliás, um dos principais nós da questão. Nas Comunicações, são os atores cujos interesses historicamente predominam – os grupos privados de mídia – os responsáveis principais pela colocação dos temas na agenda pública. E mais: são esses atores que ainda têm o maior poder de influenciar, direta e/ou indiretamente, na formação da consciência pública sobre a questão.
Um complicador adicional é que os hábitos no consumo do entretenimento e da informação são construídos no longo prazo. E quando não se tem uma alternativa de referência, dificilmente o modelo cultural hegemônico é questionado.
Quando a Federal Communications Commission – a agência reguladora das comunicações nos Estados Unidos – tentou “flexibilizar” as regras da propriedade cruzada da mídia, em 2003, uma imensa e inesperada reação da população junto ao Congresso impediu que a medida fosse consumada. Milhões de e-mails entupiram as caixas de correio eletrônico de deputados e senadores mostrando o desserviço à democracia do que lá se chama “controle corporativo da mídia”.
A reação popular nos Estados Unidos foi conseqüência de um trabalho de “formiguinha” que dezenas de entidades de observação e crítica da mídia vêm fazendo ao longo do tempo. No Brasil, ainda falta muito para que o direito à comunicação se consolide junto à maioria de nossa população.
Dentro desse amplo quadro de questões e com o objetivo de contribuir para a ampliação do debate sobre as Comunicações é que se organizou este Política de comunicações: Um balanço dos governos Lula [2003-2010].
Não se trata apenas de apresentar um acompanhamento crítico das iniciativas de governo em relação às políticas públicas de Comunicações ao longo dos últimos oito anos, mas também de delinear o contexto cronológico dentro do qual os principais atores interessados na formulação dessas políticas se movimentaram no período. Para tanto, tomou-se como referencia cinco grandes temas, divididos em subtemas.
Marco regulatório
O primeiro deles foi o Marco Regulatório. Reúnem-se aqui trinta e sete artigos que discutem, em primeiro lugar, o estado geral de desrregulação do setor, com ênfase na não regulamentação dos artigos do capítulo sobre a Comunicação Social da Constituição de 1988. Em seguida, trata-se da ausência de regulação da propriedade cruzada dos meios, fonte principal do estado de concentração que caracteriza as atividades de mídia no nosso país. Em seguida, discutem-se evidências da permanência da prática do coronelismo eletrônico, incluindo-se aí o que nomeamos de “coronelismo eletrônico evangélico”. E finalmente trata-se do vai-e-vem relativo à elaboração de uma proposta de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa que, até o momento em que se escrevem essas linhas, não se materializou.
Evidentemente nem todas as áreas que um Marco Regulatório deve abranger estão contempladas nos artigos desse capítulo. A regulamentação da TV Paga, por exemplo, não está.
Desde 2007 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que “abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos”, além de revogar a Lei do Cabo de 1995. Na sua versão atual o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007 representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007 representa os radiodifusores; e o PL 323/2007 que se situa em posição intermediária entre os interesses dos dois setores. Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, a posição de diferentes atores em relação ao projeto tem oscilado na medida mesma em que o próprio projeto sofre alterações. A operadora Sky (Grupo News Corporation/Globo) e a Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura (ABPTA) patrocinam uma campanha publicitária denominada “Liberdade na TV“ [cf. o site http://www.liberdadenatv.com.br/], contrária ao projeto com o mote “querem intervir na sua TV por assinatura” [o PLC 116/SF transformado na Lei 12.485 de 12 de setembro de 2011].
Recuos
O segundo capítulo reúne dezenove artigos que representam importantes recuos nas políticas públicas de Comunicações ocorridos no período estudado. São discutidas a interrupção do processo de transformação da ANCINE em ANCINAV; a ausência de iniciativas efetivas em relação aos canais comunitários; o recuo em relação ao Serviço de Retransmissão de TV Institucional; a mudança de direção em relação à escolha do modelo de televisão digital; a não disponibilidade pública de um cadastro geral de concessionários de radiodifusão [o cadastro geral foi recolocado no portal do MiniCom em junho de 2011]e a interrupção no funcionamento do Conselho de Comunicação Social.
Apesar de serem mencionados em outros textos, não se faz no livro uma discussão específica sobre dois temas relevantes. O primeiro é o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Como se sabe, o governo Lula encaminhou projeto de criação do CFJ ao Congresso Nacional em agosto de 2004. Segundo a Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas), o principal objetivo era “promover uma cultura de respeito ao Código de Ética dos Jornalistas”. Diante da intensa e violenta oposição da grande mídia, no entanto, a própria Fenaj, preparou e distribuiu, em Brasília, um substitutivo ao projeto original, em novembro, agora de criação de um Conselho Federal de Jornalistas como “órgão de habilitação, representação e defesa do jornalista e de normatização ética e disciplina do exercício profissional de jornalista” [o texto do substitutivo pode ser lido em http://www.fenaj.org.br/cfj/projeto_cfj.htm]. Apesar disso, através de votação simbólica, por acordo de lideranças, a Câmara dos Deputados optou por desconsiderar o substitutivo e rejeitar o primeiro projeto em dezembro de 2004.
O segundo tema é o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Aqui houve importante recuo do governo Lula em relação às diretrizes originais para a comunicação constantes da primeira versão do PNDH3 [Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009]. Menos de cinco meses depois, novo decreto [Decreto nº. 7.177 de 12 de maio de 2010] alterou o anterior e, no que se refere especificamente ao direito à comunicação: (a) manteve a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe “a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados”; (b) exclui as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e (c) exclui também a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
Avanços
Neste capítulo estão reunidos dez artigos sobre a descentralização das verbas de publicidade oficial e a realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação, CONFECOM. Não estão especificamente discutidos, todavia, dois importantes avanços alcançados no período.
O primeiro é a criação da Empresa Brasil de Comunicação(EBC/TV Brasil), em 2007, resultado da fusão da Radiobrás com a ACERP/TVE, a TVE do Maranhão e o canal digital de São Paulo. Sua conformação final surgiu das dezenas de emendas que a MP 398/07 recebeu no Congresso Nacional. Apesar de críticas que podem ser feitas ao processo de sua implantação, a EBC, finalmente criada pela Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, significa que está “no ar” uma TV institucionalmente definida como pública. Isso desloca a disputa para definir o que é uma televisão pública para a sua própria prática.
O segundo avanço importante que não está contemplado no livro é o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Em maio de 2010, o decreto n. 7.175/2010 instituiu o PNBL com o objetivo de “fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, de modo a: massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga; acelerar o desenvolvimento econômico e social; promover a inclusão digital; reduzir as desigualdades social e regional; promover a geração de emprego e renda; ampliar os serviços de Governo Eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado; promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação; e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras.” A Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás) foi reativada e será a gestora do plano, estando prevista a atuação de empresas privadas de forma complementar para fazer os serviços chegarem ao usuário final.
O presidente da Telebrás tem acusado as empresas privadas de telefonia de boicotarem o PNBL. Na verdade, cinco grupos são responsáveis por 95% da oferta atual de banda larga no Brasil – Oi, Telefônica, Embratel/Net, GVT e CTBC – enquanto 2.125 pequenos provedores respondem pelos restantes 5% do mercado. Há pouca ou nenhuma competição e os grupos dominantes são contra a inclusão de metas de expansão da infraestrutura de banda larga nos contratos de concessão das empresas de telefonia que estão em fase de revisão na ANATEL, a agência reguladora do setor.
Balanços Anuais
O quarto capítulo reúne oito artigos, transformados em seis, que são balanços anuais – e um semestral – das políticas públicas de comunicações. Eles tentam mostrar como se comportaram as diferentes áreas abarcadas neste amplo e complexo campo e fornecem o pano de fundo histórico para a compreensão mais ampla do período 2003-2010.
Contexto e estratégias
O último capítulo reúne dezessete artigos divididos em torno de seis subtemas Governabilidade; Divergências Internas; Internet; Partidarização e Intolerância; Atraso e Futuro.
Pretende-se argumentar que, em diferentes ocasiões, o que está de fato envolvido na formulação das políticas publicas de Comunicações é a própria governabilidade do país. Ao longo do período 2003-2010, ficaram evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura e a SECOM-PR. Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos.
Registra-se também o formidável avanço da internet e o recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo. Em relação à crescente partidarização da mídia é necessário lembrar que ela tem como corolário não só o enfraquecimento dos partidos, como sua própria despolitização, na medida em que são afastados da política cotidiana e confinados às formalidades e à burocracia de seu funcionamento legal e dos procedimentos eleitorais.
Especula-se ainda com relação ao futuro, tanto em relação a propostas do empresariado do setor – autorregulamentação, por exemplo – quanto às expectativas em relação ao programa e a declarações da presidente Dilma Roussef, eleita presidente do país para os próximos quatro anos (2011-2014).
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