sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010


Uma tarde para reflexão


Já vivi mais da metade da minha vida e, como fumante que leva uma vida sedentária, que carrega sobrepeso e que precisa sobreviver em uma das cidades que tem das piores qualidades de vida urbana no mundo, não devo ir tão longe assim na vida terrena. Ando mais preocupado com a alma do que com o corpo, pois.
Ou talvez seja a idade... Quando era mais jovem, a injustiça social não me magoava tanto. De uns anos para cá, porém, assisti-la tem se tornado cada vez mais doloroso.
Não faltarão os que me chamarão de “demagogo”, como se eu tivesse qualquer pretensão em me candidatar a alguma coisa ou de obter qualquer recompensa ao dizer estas coisas. Entretanto, este blog tem quatro anos, há quatro anos dizem isso de mim e, no entanto, jamais se confirmou. E nem se confirmará.
De todas as injustiças, a que está mais próxima de mim – e que, portanto, é a que mais me afeta - é o racismo que se vê em cada esquina do país, com populações negras vivendo sob viadutos ou vagando por cidades como São Paulo como zumbis ao mesmo tempo em que livros dizendo que “não somos racistas” são publicados por brancos ricos.
Corta-me o coração, provoca-me lágrimas – juro por Deus! – ver essa humilhação cotidiana dessa maioria afrodescendente, responsável que é por mais da metade da população brasileira. Vê-la, ainda, sendo a etnia dos subalternos e sendo rara entre os médicos, os advogados, os governantes, os acadêmicos, revolta.
Quando surge uma política pública para equilibrar as coisas, aparecem os tais brancos ricos escrevendo os tais livros, ocupando colunas de jornais e programas de rádio e televisão para afirmar que pôr mais negros na universidade é racismo e que deixar que sejam tão poucos no ensino superior é que é o certo...
Desafio você, leitor, a sair dessa cadeira e ir até a favela mais próxima, em um país em que dificilmente alguma cidade não tem algum tipo de favela, e constatar a etnia amplamente majoritária dos favelados. Ali não haverá dificuldade em identificar quem é negro.
A pobreza e a injustiça, no Brasil, têm cor. Negar isso é desumano. Ver alguém dessa etnia negar o que seus irmãos sofrem, é de arrasar a alma. Sinceramente, os debates destes últimos dias me abalaram emocionalmente. Não senti raiva, senti tristeza. Muita, muita tristeza.
Vocês já devem ter notado que não consigo me afastar do assunto. Não é idéia fixa, é um processo. Não consigo entender por que essa gente age assim. Sinto um pouco de medo. Pessoas como essas freqüentemente assumem posições de comando. Governam, têm como fazer suas personalidades degeneradas causarem mais danos ainda.
Não tenho medo por mim, devo esclarecer. Sou considerado branco, no Brasil. Sou casado com uma loira, com filhos brancos. Vivo num bairro branco de classe média alta, apesar de essa não ser bem a minha realidade. Mas, como nasci em tal bairro, vivi a vida toda nele.
Tenho medo de um país tão hipócrita quanto este, no qual o sujeito defende barreiras para negros finalmente irem às universidades de ponta usando um discurso de que quem quer mudar essa situação é que é racista.
Tenho medo de um país em que vemos essa gente viver como animais debaixo de viadutos e não exigimos que o poder público resgate essas populações mesmo o país tendo dinheiro de sobra para fazê-lo.
Já disse muitas vezes que a dicotomia racial brasileira produz um fenômeno que nos países racialmente homogêneos inexiste, o de um setor da sociedade achar que o SEU povo é só aquele que tem a mesma etnia que a sua, e que, portanto, não deve sentir-se aviltado ao ver o outro setor étnico viver como vivem os negros neste país.
Não é idéia fixa, é um processo que estou vivendo. Por conta dele, hoje, ao menos, continuo não tendo vontade de comentar a pesquisa Ibope, que diz exatamente o mesmo que as outras recentes, ou a hipocrisia dos ex-aliados de José Roberto Arruda, agora “chocados” e “revoltados” contra ele.
Só quero refletir sobre tudo isso. Creio que preciso de um bom passeio. Hoje, sexta-feira, portanto, não trabalharei. Vou ao Ibirapuera andar, pensar e espairecer.
Não que eu não precise trabalhar. Preciso, e muito. Vocês não imaginam quanto está custando alimentar minha filha Victoria por via enteral (por meio de sonda no abdome). Mas não estou bem. Estou muito triste. Assim, aproveitarei uma das poucas vantagens de ser autônomo para cuidar da alma.
Volto à noite para ler o que vocês escreveram sobre esta reflexão e sobre os outros posts. Desculpem-me por travar um pouco a liberação de comentários. Espero que compreendam.







Eles combatem o social

Atualizado às 21h23m de 18 de fevereiro de 2010 

 



Parte dos mais de cem comentários de leitores ao último post que escrevi sobre cotas para negros nas universidades públicas me fez refletir sobre esse setor da sociedade que combate furiosamente os programas sociais do governo Lula enquanto diz que tais programas são iguais aos de FHC, ex-presidente que parte dessa parte dos comentaristas assume que prefere.
O fato, porém, é que venho constatando, em um blog que criei não só para explicar mas também para entender, que oposicionistas assumidos e dissimulados ao governo Lula não gostam dele porque, primordialmente, não querem distribuição de renda e de oportunidades no Brasil.
São todos de classe média para alta, esses que integram tal setor da sociedade. Em parte altamente expressiva, são moradores ou oriundos dos Estados do Sul e do Sudeste do Brasil, com destaque para São Paulo.
Não lhes tenho as fotos nem os conheço pessoalmente, mas tenho certeza absoluta de que, também em grande parte, são brancos e descendentes de europeus. Uma indicação disso são seus nomes estrangeiros e a outra é o seu discurso. Porém, alguns poucos, raríssimos, são negros...
De qualquer forma, são visceralmente contra os dois programas sociais mais exitosos do governo Lula, o Bolsa Família e as cotas para negros em universidades públicas, apesar de que o PROUNI é mais abrangente e menos repudiado, além de também sofrer oposição de parte daquela parte dos comentaristas que mencionei no primeiro parágrafo.
Apesar de os inimigos dos programas sociais fazerem parte de uma minoria cadente (do ponto de vista numérico), eles são extremamente barulhentos porque os discursos anti-sociais declarados ou dissimulados que entoam são os que praticamente todos os grandes jornais, tevês, rádios, revistas semanais e portais de internet fazem prevalecer através da supressão ou da minimização do contraditório.
No caso do Bolsa Família, são mais radicais: seria “esmola” e “compra de votos” e pronto. Fazem de conta que não escutam ou lêem quando se argumenta que o programa é mundialmente reconhecido como eficiente e apropriado, ou que esse programa gerou a nova classe média emergente que, inclusive, salvou o país da derrocada econômica no ano passado ao continuar consumindo enquanto as elites se retraíam, apavoradas.
Mas quando eles não têm como atacar o Bolsa Família por seus méritos ficarem mais evidentes naquele momento, dizem que é mera “continuação” do que fazia FHC. Então se recusam a reconhecer que os investimentos e a reestruturação do programa de transferência de renda levado a cabo por Lula são ações que impedem comparação com o programa de natureza análoga executado pelo antecessor do atual presidente.
Já na questão das cotas para negros, o discurso dos adversários dos programas sociais é mais elaborado, ainda que recorra à mentira pura e simples. Nesta questão, a ordem dos inimigos do social é enganar o maior número de pessoas possível.
Como não querem aceitar a premissa de que há discriminação racial no Brasil, escrevem livros neste sentido e falam de uma “democracia racial” reiteradamente desmentida pela exclusão do ensino superior da etnia majoritária neste país.
Os afrodescendentes são mais de cinqüenta por cento dos brasileiros, mas ocupam cerca de dez por cento das vagas no ensino superior público. A questão, portanto, é racial, por mais que inexistam raças. E, como raças não existem, os que querem perpetuar essa situação de exclusão racial – uma situação de existência comprovada – tratam de distorcer os fatos.
A primeira forma de manutenção da desigualdade racial no ensino superior público consiste em simplesmente não aceitar a existência do problema racial que os números COMPROVAM que existe nesse mesmo ensino superior público, qualificação que fico repetindo para não tentarem confundi-la com a do ensino superior em geral, onde o problema vai ficando menor graças ao PROUNI.
O problema é que o ensino superior público é pago por duas quase metades da população, uma branca e outra afrodescendente, mas a primeira “quase metade” fica com percentuais de cinqüenta, sessenta, setenta e até oitenta (!) por cento das vagas e a outra com cerca de dez por cento. O problema é “só” esse.
Estando provado que há um problema racial na distribuição de vagas entre as duas maiores etnias do país, um problema que eu diria bastante grave, a questão, agora, é saber como resolvê-lo. Pergunto, pois: um problema racial deve ser resolvido com uma medida racial ou com uma medida etnicamente genérica?
Aí eles vêm dizer que raças não existem, no que estão certos. Todavia, apesar de raças não existirem, nunca há dúvida sobre quem é ou não negro na hora de discriminar quem tem a pele mais escura ou apenas traços de negro devido ao cabelo, aos lábios, ao nariz.
Vão aos clubes chiques de São Paulo ou do Rio, por exemplo, e verão como eles sabem discriminar. Peguem qualquer um dos beneficiários das cotas e levem-no para uma sala de aula de um curso de medicina da USP e comparem-no, fisicamente, com a maioria absoluta que há ali e verão a disparidade. Podem negar, mas só para quem não fizer o teste.
É por isso que praticamente não existem médicos negros em São Paulo, seja no sistema público de saúde ou no privado. O mesmo se repete em muitas partes do Brasil. Mas como em São Paulo se conseguiu manter mais o bloqueio a negros na medicina, por exemplo, provavelmente o fenômeno irá durar mais tempo. Mas no resto do Brasil as coisas estão mudando e é graças a cotas étnicas.
Contudo, há outras estratégias dos inimigos do social para fazerem prevalecer seus interesses. Uma delas é cooptar negros satisfeitos com o merecido sucesso na vida que alcançaram através da educação valendo-se de eles aparentemente terem esquecido como é duro e injusto não ter perspectiva de sucesso na vida por não ter a cor “certa” da pele.
Outra forma é propor cotas que não funcionem, as ditas cotas “sociais”, que se baseiam em um patamar mínimo de renda. Têm a vantagem, para quem renega a existência do racismo, de não constituírem admissão da existência desse que é talvez o pior dos preconceitos. Ao não se reconhecer o racismo ficaria mais fácil esconder que ele existe, ao menos na cabeça dessas pessoas.
O problema é que cotas sociais não são tão efetivas quanto as raciais. Basta comparar as instituições de ensino que têm só as primeiras com as que têm as duas que se constará que universidade com cotas raciais abriga percentual maior de negros.
Isso acontece porque, ao se estabelecer um patamar de renda para benefício das cotas, os que estiverem em melhores condições de competir naquele segmento social continuarão ficando com as vagas, e os que têm maior condição de competir são sempre os brancos, do que o problema racial no ensino superior público, que descrevi acima, é prova inconteste.
A preocupação de todos os que querem justiça social deveria ser corrigir uma distorção grave em nossa sociedade, baseada simplesmente na cor da pele e nos traços exteriores das cabeças das pessoas. Esses que combatem o social, no entanto, sejam eles grandes meios de comunicação ou os membros predominantemente brancos do topo da pirâmide social, agem para manter a desigualdade racial.
Aqui foi descrito, pois, como eles agem, esses que combatem programas sociais que inegavelmente estão nivelando o Brasil regional e racialmente. E conhecê-los é o primeiro e o mais importante passo para combater seus esforços vis.


Dados públicos e notórios


Apesar de haver uma vastidão de dados  disponíveis na internet que comprovam todas as afirmações que faço neste post sobre a situação de exclusão do negro que ainda persiste no ensino superior apesar das combatidas iniciativas para mudar esse quadro, por absoluta má fé alguns leitores pedem provas de dados que são amplamente conhecidos por todos os que se dedicam à questão. Trocando em miúdos: ninguém sério nega que a proporção de negros e mestiços nas universidades públicas é absolutamente desigual em relação à de brancos, e ninguém nega que os negros e mestiços, de acordo com dados recentes do IBGE amplamente divulgados, já são maioria entre a população brasileira, tendo ultrapassado os 50%.
Desta maneira, começo a divulgar dados que comprovam minhas afirmações. E, para começar, o gráfico abaixo demonstra a situação encontrada por Lula nas universidades públicas quando assumiu, no que tange à distribuição de vagas por etnia nessas instituições. Clicando no gráfico abaixo, você terá acesso a um estudo bastante detalhado da época. Começarei, também, a publicar com freqüência informações mais detalhadas para demonstrar que a desigualdade racial no ensino superior é gravíssima no Brasil, conforme afirmo no texto que inicia este post, e que esse problema precisa de solução específica, pois é um problema específico que vitima aqueles dos quais os interesses particulares não comparto, mas apóio.


 





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