Por Mino Carta, na CartaCapital:
É do conhecimento até do mundo mineral que nunca escrevi uma única,
escassa linha para louvar os torturadores da ditadura, estivessem eles a
serviço da Operação Bandeirantes ou do DOI-Codi. Ou no Rio, na Barão de
Mesquita. E nunca suspeitei que a esta altura da minha longa carreira
jornalística me colheria a traçar as linhas acima.
Meu
desempenho é conhecido, meus comportamentos também. Mesmo assim, há
quem se abale a inventar histórias a meu respeito. Alguém que,
obviamente, fica abaixo do mundo mineral.
Não me faltaram detratores vida adentro, ninguém, contudo, conseguiu
provar coisa alguma que me desabonasse. Os atuais superam-se. Um deles
se
diz
jornalista, outro acadêmico. Pannunzio & Magnoli, binômio perfeito
para uma dupla do picadeiro, na hipótese mais generosa de uma farsa
cinematográfica. Esmeram-se para demonstrar exatamente o que soletro há
tempo: a mídia nativa prima tanto por sua mediocridade técnica quanto
por sua invejável capacidade de inventar, omitir e mentir.
Afirmam que no meu tempo de diretor de redação de Veja defendi a pena de
morte contra “terrorristas”, além de enaltecer o excelente trabalho da
Oban. Outro inquisidor se associa, colunista e blogueiro, de sobrenome
Azevedo. E me aponta, além do já dito, como um singular profissional que
não aceita interferência do patrão. Incrível: arrogo-me mandar mais do
que o próprio. Normal que ele me escale para o seu auto de fé. O Brasil é
o único país do meu conhecimento onde os profissionais chamam de colega
o dono da casa.
Não há nas calúnias que me alvejam o mais pálido resquício de verdade
factual. Os textos que me atribuem para baseá-las nascem de uma
mistificação. Pinçados ao acaso e fora do contexto, um somente é de
minha autoria e nada diz que me incrimine. E pouparei os leitores de
disquisições sobre minha repulsa visceral, antes ainda que moral, à
prisão sem mandado, à tortura e à pena de morte. Quando o Estadão foi
pioneiro na publicação de um artigo assinado Magnoli, limitei-me a
escrever um breve texto para o site de CartaCapital, destinado a contar a
história de outra peça de humorismo, escrita em 1970 por um certo
Lenildo Tabosa Pessoa, redator, vejam só, do Estadão, e intitulada O
Senhor Demetrio. Ou seja, eu mesmo, marcado no batismo por nome tão
pesado.
Lenildo pretendia publicar seu texto no jornal, os patrões, Julio de
Mesquita Neto e Ruy Mesquita, não deixaram. Surgiu em matéria paga o
retrato de um hipócrita pretensamente refinado que, como Arlequim da
política, servia ao mesmo tempo Máfia e Kremlin. O senhor Demetrio, de
codinome Mino. Diga-se que Lenildo encontraria eco três anos depois no
programa global de um facínora chamado Amaral Neto, também identificado
como Amoral Nato, que repetia Lenildo no vídeo. Como se vê, tom e letra
das calúnias estão sujeitos a mudanças ideológicas.
Ao negarem espaço nas páginas da sua responsabilidade à diatribe de
Lenildo, os herdeiros do doutor Julinho quiseram respeitar a memória do
meu pai, que trabalhou no Estadão por 16 anos, e meu honesto e leal
desempenho na criação daEdição de Esporte e do Jornal da Tarde. O
Estadão, evidentemente, não é mais o mesmo. Lenildo e Amaral Neto me
tinham como perigoso subversivo de esquerda. Em compensação, hoje sou
acusado de ter dirigido naquele mesmo 1970 uma Veja entregue “à
bajulação, subserviência e propaganda da ditadura”. É espantoso, mas a
semanal da Abril em 1970 era submetida à censura exercida na redação por
militares. Eu gostaria de saber o que acham os senhores Pannunzio,
Magnoli e Azevedo a respeito de quem na mídia brasileira se perfilava
illo tempore ao lado da ditadura. Ou seja, quase todos.
Quem, de fato foi censurado? Os alternativos, então chamados nanicos, em
peso, do Pasquim aOpinião, que depois se tornariaMovimento, sem
exclusão de O São Paulo, o jornal da Cúria paulistana regida por dom
Paulo Evaristo Arns. A Veja, primeiro por militares, depois por
policiais civis no período Médici. Com Geisel, passou a ser censurada
diariamente, de terça a sexta, nas dependências da Polícia Federal em
São Paulo, e aos sábados, à época dia de fechamento, na própria
residência de censores investidos do direito a um fim de semana
aprazível. Enquanto isso, Geisel exigia que os alternativos submetessem
seu material às tesouras censórias em Brasília, toda terça-feira.
Sim,
o Estadão também foi censurado e com ele o Jornal da Tarde. A punição
resultava de uma briga em família. O jornal apoiara o golpe, mas sonhava
com a devolução do poder a um civil, desde que se chamasse Carlos
Lacerda. Este não deixava por menos nas suas aventuras oníricas. O
Estadão acabou sob censura, retirada contudo em janeiro de 1975, no
quadro das celebrações do centenário do jornal. Carlos Lacerda foi
cassado. Diga-se que ao Estadãopermitia-se preencher os espaços vagos
deixados pelos cortes com versos de Camões, em geral bem escolhidos, e
ao Jornal da Tarde com receitas de bolo, às vezes discutíveis. O resto
da mídia não sofreu censura. Não era preciso.
Quando me chamam para fazer palestras em cursos de jornalismo, sempre me
surpreendo ao verificar que o enredo que acabo de alinhavar é ignorado
pelos alunos e por muitos professores. Acham que a censura foi ampla,
geral e irrestrita. Meus críticos botões observam que me surpreendo à
toa. Pois não se trata de futuros Pannunzios, Magnolis e Azevedos? No
caso deste senhor Reinaldo, vale acentuar uma nossa específica
diferença. Não me refiro ao fato de que eu reputo Antonio Gramsci um
grande pensador, enquanto ele o define como terrorista. A questão é
outra.
Ocorre que, ao trabalhar e ao fazer estágios na Europa, entendi de vez
que patrão é patrão e empregado é empregado, e que para dirigir redações
o profissional é chamado por causa de sua exclusiva competência. Ao
contrário do que se dá no Brasil, por lá não há diretores por direito
divino. Por isso, ao deixar o Jornal da Tarde para tomar o comando dos
preparativos do lançamento de Veja, me senti em condições de exigir
certas garantias.
No Estadão tivera um excelente relacionamento com a família Mesquita,
fortalecido pela lembrança que cultivavam de meu pai, iniciador da
reforma do jornal que Claudio Abramo aprofundou e completou. Gozei na
casa então ainda do doutor Julinho, filho do fundador, de grande
autonomia, aquela que facilitou a criação de um diário de estilo muito
próprio, arrojado na diagramação, em busca de qualidade literária no
texto. Estava claro, porém, que a linha política seria a da família. Com
os Mesquita me dei muito bem, foram de longe meus melhores patrões,
talvez os remanescentes não percebam que por eles tenho afeto, embora,
saído doEstadão, não me preocupasse em mostrar que minhas ideias não
coincidiam com as deles.
Convidado finalmente pelos Civita para a empreitada de Veja, solicitei
uma liberdade de ação diversa daquela de que gozara no Jornal da Tarde.
Só aceitaria o convite se os donos da Abril, uma vez definida a fórmula
da publicação, se portassem como leitores a cada edição, passível de
discussão está claro, mas a posteriori, quer dizer, quando já nas
bancas.
Pedido aceito. A primeira Veja, espécie de newsmagazine à brasileira,
foi um fracasso. Além disso, já irritou os fardados por trazer na capa a
foice e o martelo. A temperatura subiu com a segunda capa, a favor da
Igreja politicamente engajada. A quinta, com a cobertura do congresso da
UNE em Ibiúna, foi apreendida nas bancas. E também o foi aquela que
celebrou a decretação do AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968. Tempos
difíceis. Mas a edição de mais nítido desafio aos algozes da ditadura é
de mais ou menos um ano depois. A chamada de capa era simples e direta:
“Torturas”, em letras de forma.
A história desta reportagem começou cerca de três meses antes, com uma
investigação capilar conduzida por uma equipe de oito repórteres
encabeçada por Raymundo Rodrigues Pereira. Foram levantados 150 casos,
três deles nos detalhes mínimos. Emílio Garrastazu Médici acabava de ser
escolhido para substituir a Junta Militar e pela pena do então coronel
Octavio Costa acenava em discurso, pretensamente poético ao declinar a
origem do novo ditador por dizê-lo vindo do Minuano, à necessidade do
abrandamento da repressão. Raymundo e eu recorremos a um estratagema, e
saímos com uma edição anódina para celebrar o vento gaúcho. Falávamos da
posse, da composição do ministério, do discurso. Chamada de capa: “O
Presidente Não Admite Torturas”.
Ofereço este número de Veja à aguda análise de Pannunzios, Magnolis,
Azevedos e quejandos. (Nada a ver com queijo.) Bajulação e subserviência
estão ali expostas da forma mais redonda. Naquele momento, a mídia foi
atrás de Veja, e por três dias falou-se mais ou menos abertamente de
tortura. Logo veio a proibição, que Veja ignorou. Na noite de
sexta-feira a reportagem da equipe de Raymundo descia à gráfica para
arrolar 150 irrefutáveis casos de tortura, dos quais três em detalhes.
Ao mesmo tempo, eu mandava cortar os telefones da Abril para impedir
ligações de quem pretendesse interferir, autoridades, patrões e
intermediários. A edição foi apreendida nas bancas, e logo desembarcou
na redação a censura dos militares.
Quando ouvi falar em distensão pela primeira vez, meados de 1972, pela
boca do general Golbery, à época presidente da Dow Chemical no Brasil,
pareceu-me possível alguma mudança na sucessão de Médici. De fato,
Golbery, que vinha de conhecer, articulava na sombra a candidatura de
Ernesto Geisel, títere sob medida para as suas artes de titereiro.
Meados de 1973, assenta-se a candidatura obrigatória de Geisel. Alguns
meses após, ministério em gestação, Golbery, futuro chefe da Casa Civil à
revelia de Médici, me sugere uma conversa com o recém-convocado para a
pasta da Justiça, Armando Falcão. Assunto: fim da censura em clima de
distensão.
Conversei duas vezes com Falcão enquanto Roberto Civita entre janeiro e
fevereiro de 1974 apontava em Hugh Hefner um notável filósofo da
modernidade. Mal assumiu a pasta, dia 19 de março de 1974, Falcão
chamou-me a Brasília para comunicar que a censura se ia naquele
instante. Sublinhei: “Sem compromisso algum de nossa parte”. “Claro,
claro”, proclamou, e me deu de presente seu livro de recente publicação,
intitulado A Revolução Permanente. Mais tarde Golbery comentaria:
“Falcão é o nosso Trotski”.
Três semanas após, a censura voltou, mais feroz do que antes. Duas
reportagens causaram a costumeira irritação, fatal foi uma charge de
Millôr Fernandes. Em revide, decretava-se que a censura seria executada
em Brasília às terças-feiras. Fui visitar Golbery no dia seguinte, eu
estava de veneta rebelde, levei meus dois filhos meninotes, e andei pela
capital federal de limusine. No meu livro de próxima publicação, O
Brasil, a sair pela Editora Record como O Castelo de Âmbar, descrevo
assim a visita ao chefe da Casa Civil.
“A secretária do ministro, dona Lurdinha, senhora de modos caseiros,
redonda rola sobre o carpete sem perder o sorriso, chega-se ao meu
ouvido, murmura: “Veio também o senhor Roberto Civita, quer ser recebido
mas não tem hora marcada”. Não deixo que o tempo se estique
inutilmente, tomo a visão panorâmica da antessala e vejo Arci, entalado
em uma poltrona com expressão perdida na paisagem da savana descortinada
além das vidraças. “Que faz aqui?” E ouço meu próprio latido.
“Vici me contou que você viria, e eu gostaria…”
“Você não pediu audiência, não tem hora”, proclamo.
Ele insiste, à beira da imploração. O meu tom chama a atenção de Manuela
e Gianni, encaram a cena sem entender o assunto, percebem porém que o
pai está muito irritado, enquanto o outro tem jeito de pedinte. Lurdinha
traz uma laranjada para as crianças e avisa que o general está à
espera. Admito: “Você entra comigo, mas se compromete a não abrir a
boca”. Ele promete.
Na conversa que se segue no gabinete da Casa Civil, o meu argumento é
óbvio, Veja é uma revista semanal que encerra o trabalho na noite de
sábado e vai às bancas às segundas-feiras, obrigá-la a submeter textos e
fotos aos censores na terça significa inviabilizá-la. Pergunto a
Golbery: “Os senhores pretendem que Veja simplesmente acabe?” Não, nada
disso. “Então é preciso pôr em prática outro sistema.”
O chefe da Casa Civil entende e concorda. Diz: “Vá até o Ministério da
Justiça, fale com Falcão, a Lurdinha já vai avisá-lo, diga a ele que
vamos procurar uma saída até amanhã no máximo, a próxima edição tem de
sair regularmente”.
Golbery fica de pé, hora da despedida. O general não conhecia o
patrãozinho que até aquele momento cumpriu a promessa feita na
antessala. E de supetão abre a boca: “General, se o senhor acha que
devemos tomar alguma providência em relação ao Millôr Fernandes…”
Golbery fulminou-o: “Senhor Civita, não pedi a cabeça de ninguém”.
Vici e Arci, ou seja, Victor Civita e Roberto Civita, assim se chamavam
no castelo envidraçado à beira do Tietê, esgoto paulistano ao ar livre.
Esse entrecho já o desenrolei em O Castelo de Âmbar sem merecer
desmentido e o próprio Millôr o colocou no ar do seu blog logo após a
publicação no final de 2000. Ao sair do gabinete de Golbery, eu disse a
Roberto Civita “você é mesmo cretino”, como depois o definiria na
conversa de despedida com o pai Victor, mas poderia dizer coisa muito
pior. Quanto à minha saída da direção de Veja e de conselheiro board
abriliano, descrevi o evento em editorial de poucas semanas atrás. Faço
questão de salientar, apenas e ainda, que não fui demitido, e sim me
demiti para não receber um único centavo das mãos de um Civita, nem que
fosse a comissão pelo empréstimo de 50 milhões de dólares recebidos pela
Abril da Caixa Econômica Federal, juntamente com o fim da censura, em
troca da minha cabeça. A revista prontamente caiu nos braços do regime.
A partir daí, tive de inventar meus empregos para viver. Ou por outra,
para viver com um salário infinitamente menor (insisto, infinitamente)
do que aquele dos importantes da imprensa, e nem se fale daqueles da
televisão. Ganham mais que os europeus e de muitos americanos. Em outro
país, um jornalista com o meu passado não sofreria as calúnias de
Pannunzios, Magnolis e Azevedos, e de vários que os precederam. Muito
representativos de uma mídia que manipula, inventa, omite e mente.
Observem os fatos e as mentiras da atualidade imediata, o caso criado
pelo protagonismo de Gilmar Mendes e pela ferocidade delirante dos
chapa-branca da casa-grande. Além do mais, há em tudo isso um traço
profundo de infantilidade, um rasgo abissal, a provar o estágio
primitivo da sociedade do privilégio, certa de que a senzala aplaude
Dilma e Lula e mesmo assim se conforma, resignada, dentro dos seus
habituais limites.
Os caluniadores são, antes de mais nada, covardes. Sentem as costas
protegidas pela falta generalizada de memória, ou pela pronta inclinação
ao esquecimento. Pela impunidade tradicional garantida por uma Justiça
que não pune o rico e poderoso. Pelo respaldo do patrão comprometido com
a manutenção do atraso em um país onde somente 36% da população conta
com saneamento básico, e 50 mil pessoas morrem assassinadas ano após
outro. Confiam no naufrágio da verdade factual, pela enésima vez, e que
tudo acabe em pizza, como outrora se dizia, a começar pela CPI do
Cachoeira e pela pantomima encenada por Gilmar Mendes. E que o tempo,
vertiginoso e fulminante como sempre, se feche sobre os fatos, sobre
mais uma grande vergonha, como o mar sobre um barco furado.