O trauma do afastamento (o impeachment só seria votado, dois meses depois, em novembro) havia tornado a personalidade de Collor ainda mais estranha. Diariamente, ele acordava cedo, se vestia impecavelmente de paletó e gravata, se fazia acompanhar de assessores e seguranças e, então, atravessava a rua para ir à biblioteca. Isso mesmo: o cômodo não ficava na Casa da Dinda, mas numa casa menor, em frente à residência do presidente. Todo santo dia, um Collor soturno, com olhar vidrado e andar robótico, fazia aquela travessia surreal em direção a um poder imaginário. Lá, sentava em frente a uma mesa de reuniões de madeira maciça e colocava em frente a si um daqueles aparelhos elétricos antigos que matavam insetos. Por quase dois meses, quando finalmente renunciou antes de ser cassado, o presidente do Brasil fingia governar o país em meio a consultas solitárias de títulos aleatórios de livros da família ao som de pequenos estalos provocados pela eletrocutação de moscas e muriçocas. Enquanto o mundo se desmoronava a seu redor, Collor vivia, como um autista, num universo próprio e impenetrável. E dele, ao que parece, nunca mais emergiu.
Essas impressões sobre o atual senador Collor me vieram à cabeça depois de ouvir o pronunciamento do governador José Roberto Arruda, no momento em que ele anunciou sua desfiliação do DEM. Arruda virou um espectro humano desagradável, e mesmo para jornalistas experientes não deixa de ser penoso se defrontar com a manifestação física da degradação moral de um político caído em desgraça. Desmoralizado e abandonado pela raia miúda que com ele se locupletou dos maços de dinheiro que fazem a festa no Youtube, Arruda parece ter entrado naquela fase autista de Collor. Ao falar à imprensa, não estava se dirigindo ao mundo real, mas a uma existência virtual projetada em outra dimensão. Arruda decidiu que o importante agora é continuar governando o Distrito Federal e tocar as mais de mil obras em andamento, levantadas em toda parte, com vistas aos 50 anos de Brasília, a serem comemorados em 21 de abril de 2010.
Em primeiro lugar, José Roberto Arruda não governa mais o Distrito Federal. Sua última ação administrativa foi, digamos assim, a ordem dada à Política Militar para atacar, com cavalos, cães e cassetetes, dois mil manifestantes que estavam pacificamente no Eixo Monumental de Brasília. Lá, como ilustração da anarquia que virá, um coronel PM de cabelos brancos partiu como um babuíno enfurecido para cima de um estudante e rasgou-lhe a camisa. Filmado, ordenou aos PMs que jogassem gás de pimenta nos olhos dos cinegrafistas. Arruda, ao que parece, estava na residência oficial, decidindo se contratará a cantora pop Madonna ou a banda irlandesa U2 para abrir os festejos do Cinqüentenário.
Arruda não tem mais nenhum partido em sua base de sustentação e, agora, não faz parte de nenhuma sigla partidária. Em duas semanas, perdeu 12 secretários e seis administradores regionais (das cidades-satélites e do Plano Piloto). Na Câmara Legislativa, metade dos 24 deputados distritais está envolvida no Mensalão do DEM. Arruda, que costumava inaugurar até creche de boneca, não tem mais coragem de colocar o pé para fora de casa.
Vai para o Palácio do Buritinga, sede do governo, em Taguatinga, escondido pelos vidros fumê de carros oficiais, mais ou menos como Collor atravessava a rua para mergulhar no mundo encantado da biblioteca do avô.
Entrou, definitivamente, na fase do autismo. E com ele, o DEM. O Ex-PFL, ao que parece, acredita mesmo que, ao se livrar de Arruda, irá também se livrar da pecha de partido atrasado, reacionário e corrupto.
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